
“Quando eu nasci, as frases que hão de salvar a humanidade já estavam todas escritas.
Só faltava uma coisa: salvar a humanidade.” (José de Almada Negreiros)
Curar a infância (trecho), de Valter Hugo Mãe
(…) Na mesa da professora, por hábito, ficava apenas a régua preferida, uma menos domingueira, mais normal ou habituada ao trabalho.
Num ano, o Manuel ofereceu à professora uma régua que o pai fizera.
O Manuel, de quem nunca mais soube nada, porque julgo que à quarta classe abandonou para sempre os estudos, era um menino sobretudo pesaroso.
Lembro-me dele como de uma sombra. Uma camisola verde gasta, sem rosto, só contorcida, magra, sem se ouvir ali ninguém.
Aprendia devagar e tinha sempre fome. Tínhamos sempre fome. A pobreza era a normalidade.
Não sei que fez o Manuel naquele dia. De hábito, estávamos todos perdoados no dia dos presentes.
A manhã toda a professora abria as coisas cuidadas que as famílias tão simples tinham o brio de enviar. E alegrávamo-nos.
Talvez o Manuel tivesse erros nos trabalhos de casa. Certamente foi isso.
A professora pediu-lhe a mão, mostrou que usaria a régua que o seu próprio pai acabara de lhe oferecer, e bateu-lhe.
Quando nos batia a palma da mão, era impossível conter o braço. Os músculos desmanchavam um pouco e o sangue assomava à pele que ficava rubra.
E chorávamos lágrimas gordas, sem grito. Não se podia fazer barulho. O grito daria lugar a uma segunda reguada, e estava tão provado que assim era que o Manuel chorou mudo e curvou-se mais, a sua camisola verde como um trapo amarrotado sempre sem ninguém dentro.
Nesse mesmo ano, depois das férias do Natal, a professora tomou a régua do pai do Manuel e bateu-lhe de novo, e o Manuel gritou muito caindo no chão.
À dor inusitada, depois de um primeiro protesto, a mulher deteve-se, ordenou que se levantasse, e todos vimos, mesmo por dentro da camisola, que lhe partira o braço.
A turma calada, num medo semelhante a estarmos fechados numa sala com alguém que poderia querer matar-nos um a um.
O meu amiguinho recolheu as suas coisas, muito choroso e sempre culpado, e foi sentar-se no átrio da entrada.
Meia hora depois, alguém veio por ele para o levar ao hospital.
Regressou no dia seguinte, de braço engessado, mais calado do que nunca. (…)”