
“Os homens normais não sabem que tudo é possível.” (David Rousset)
Ah, se muitos lessem Hannah Arendt!
As ideologias, que anulam personalidades e as substituem pelo coletivo, pelo mugido das multidões, talvez não encontrassem terreno fértil.
Talvez, mas não é certo. Vejam o que ocorre neste momento de pandemia: evidências que pareciam inquestionáveis só fortaleceram algumas irracionalidades da extrema direita.
Há um fosso entre realidade e fantasia naqueles com “predisposição autoritária“, que representam cerca de um terço da população, segundo Karen Stenner. Para esses, o fosso se amplia em momentos de crise.
As ideologias – nos dois extremos do espectro político – são “instrumentos mistificadores do embrutecimento das massas e da transformação do indivíduo em elemento inerte destas massas”, conforme Marcos Margulies.
Hannah dizia: “É muito perturbador o fato do regime totalitário, malgrado o seu caráter evidentemente criminoso, contar com o apoio das massas.”
A insatisfação difusa e envolvente alimenta a irracionalidade da adesão aos movimentos autoritários.
As mentiras, versões distorcidas e instrumentalizadas, divulgadas por aparatos de comunicação em rede, só prosperam porque há receptáculos ansiando por esses vírus.
Rodrigo Nunes entende que a paixão antissistema consegue ser mobilizada por duas razões, basicamente:
- o sistema político tem operado com baixa legitimidade. As eleições não garantem que os interesses da maioria da população serão priorizados. As elites e instituições agem como se não precisassem contar com a confiança do povo.
- as insatisfações, embora difusas, realmente existem. Decorrem de carências históricas já desgastadas de tantas repetições e promessas vãs: saúde, educação e segurança, principalmente.
Falo sempre que há uma “crise de gestão“. Mas os governantes atuais praticam a “gestão por meio de crises“.
A extrema direita tem sabido captar essa inquietação: oferece uma política antissistema, com políticos “novos”, imunes às práticas do velho esquema. Mesmo que isso seja mais uma mentira; é o que querem ouvir.
Esses políticos se apresentam como inimigos das elites – representantes do “sistema” -embora só ataquem a elite política adversária e os líderes culturais. A elite econômica, naturalmente, é preservada.
A população inerte, a que só observa, que ora tende para um lado, ora para o outro, tornando a curva eleitoral assimétrica, aposta na “espontaneidade” e espera que algo transformador de fato aconteça.
“A crença de que o resultado que esperamos se verificará – independentemente do esforço ou de nossa capacidade para produzi-lo – oferece o conforto psicológico óbvio de tornar nossa própria fraqueza política e organizacional irrelevante.” (Rodrigo Nunes)