
O Brasil, contrariando os mandatários atuais, que nem perdem tempo em classificar a “poesia” (imaginem: se acham o temor à pandemia uma frescura!), tem duas datas comemorativas para os que acham que “para viajar basta existir“.
A tradicional homenageia Castro Alves, que nasceu em 14 de março de 1847. Depois, oficializou-se o 31 de outubro, para prestigiar Carlos Drummond de Andrade, nascido nesta data, em 1902.
Para lembrar a ambos, trago Ferreira Gullar, pseudônimo de José Ribamar Ferreira, um grande poeta – sensível, atuante e crítico da “normalidade factual”.
“Pretendo que a poesia tenha a virtude de, em meio ao sofrimento e o desamparo, acender uma luz qualquer, uma luz que não nos é dada, que não desce dos céus, mas que nasce das mãos e do espírito dos homens.” (Gullar)
AS PERAS
As peras, no prato,
apodrecem.
O relógio, sobre elas,
mede
a sua morte?
Paremos o pêndulo.
Deteríamos, assim, a
morte das frutas?
Oh as peras cansaram-se
de suas formas e de
sua doçura! As peras,
concluídas, gastam-se no
fulgor de estarem prontas
para nada.
O relógio
não mede. Trabalha
no vazio: sua voz desliza
fora dos corpos.
Tudo é o cansaço
de si. As peras se consomem
no seu doirado
sossego. As flores, no canteiro
diário, ardem,
ardem, em vermelhos e azuis. Tudo
desliza e está só.
O dia
comum, dia de todos, é a
distância entre as coisas.
Mas o dia do gato, o felino
e sem palavras
dia do gato que passa entre os móveis
é passar. Não entre os móveis. Passar
como eu
passo:
entre nada.
O dia das peras
é o seu apodrecimento.
É tranquilo o dia
das peras? Elas não gritam,
como o galo.
Gritar
para quê? se o canto
é apenas um arco
efêmero fora do coração?
Era preciso que
o canto não cessasse
nunca. Não pelo
canto (canto que os
homens ouvem) mas
porque cantando
o galo
é sem morte.
O ESCRAVO
Detrás da flor me subjugam,
atam-me os pés e as mãos.
E um pássaro vem cantar
para que eu me negue.
Mas eu sei que a única haste do tempo
é o sulco do riso na terra
– e a boca espedaçada que continua falando.
VOLTAS PARA CASA
Depois de um dia inteiro de trabalho
voltas para casa, cansado.
Já é noite em teu bairro e as mocinhas
de calças compridas desceram para a porta
após o jantar.
Os namorados vão ao cinema.
As empregadas surgem das entradas de serviço.
Caminhas na calçada escura.
Consumiste o dia numa sala fechada,
lidando com papéis e números.
Telefonaste, escreveste,
irritações e simpatias surgiram e desapareceram
no fluir dessas horas. E caminhas,
agora, vazio,
como se nada acontecera.
De fato, nada te acontece, exceto
talvez o estranho que te pisa o pé no elevador
e se desculpa.
Desde quando tua vida parou? Falas dos desastres,
dos crimes, dos adultérios,
mas são leitura de jornal. Fremes
ao pensar em certo filme que viste: a vida,
a vida é bela!
A vida é bela
mas não a tua. Não a de Pedro,
de Antônio, de Jorge, de Júlio,
de Lúcia, de Míriam, de Luísa …
Às vezes pensas
com nostalgia
nos anos de guerra,
o horizonte de pólvora,
o cabrito. Mas a guerra
agora é outra. Caminhas.
Tua casa está ali. A janela
acesa no terceiro andar. As crianças
ainda não dormiram.
Terá o mundo de ser para elas
este logro? Não será
teu dever mudá-lo?
Apertas o botão da cigarra.
Amanhã ainda não será outro dia.