
“Eu penso em ‘As mil e uma noites‘: falava-se, narrava-se até o amanhecer para afastar a morte, para adiar o prazo deste desenlace que deveria fechar a boca do narrador.” (Michel Foucault)
Na 39ª noite, Sherazade conta o trágico desfecho decorrente da paixão entre irmãos. O pai deles encontra o túmulo do casal. No leito, os dois corpos estavam carbonizados – só os corpos, não o dossel.
“… desde pequeno o meu filho foi tomado de amores pela irmã. Eu lhe proibia aquilo e pensava: ‘Ainda são pequenos’.
Quando cresceram, porém ocorreu entre eles a abominação …”
Esse episódio é citado por Leiko, uma das personagens bizarras criadas por Yukio Mishima, no seu livro “Vida à venda“. Leiko é uma atormentada, achava que enlouqueceria a qualquer momento. Imaginava que tinha sífilis, herdada do pai, embora os exames descartassem a doença.
Ela alimentava essa loucura. E transformou uma edícula numa espécie de tumba, inspirada no caso dos irmãos incestuosos, e aguardava seu “príncipe” para morrerem juntos.
Encontra Hanio, um sujeito que desistira da vida, mas como não tivera sucesso numa tentativa de suicídio, colocara sua vida à venda.
O suicídio lhe parecia enfadonho e muito dramático. A vida seria destituída de sentido e, para viver essa falta de sentido era necessária uma vigorosa energia; cansativa. Ansiedade seria outro nome para vida.
Desprezava todos os que possuíam uma “razão” para tudo.
Ironicamente, estava condenado a viver.
Com sua decisão de vender sua vida seu hoje deixara de existir para sempre. Sentimentos e moralidade não lhe diziam respeito.
“Vendo minha vida. Use-a como quiser. Homem de 27 anos. Garanto sigilo. Tranquilidade absoluta”, anunciou.
Aparecem clientes, com as mais estranhas situações, que o contratam para tarefas mortais.
“Por que a natureza é desnecessariamente tão bela, e o homem desnecessariamente tão complicado?
Abandone doravante o raciocínio complexo.
Embora não pareça, tanto a vida quanto a política são coisas simples e superficiais. Se bem que só alcançamos essa percepção quando estamos preparados para enfrentar a morte a qualquer momento. A avidez pela vida faz com que tudo pareça misterioso e complicado.
Políticos, por exemplo, vivem se ‘confrontando’ porque não têm mais o que fazer.” (Hanio)
O próprio Yukio Mishima (1925-1970) era ‘desajustado’. Nacionalista, cometeu o ritual suicida seppuku (haraquiri) após uma fracassada tentativa de mobilização dos militares para a plena restauração do poder imperial.