Navios negreiros

1797: Nascia o poeta alemão Heinrich Heine | Fatos que marcaram o dia | DW  | 13.12.2016
(Heinrich Heine, (1797-1856)

O poema abaixo, “O navio negreiro”, mesmo título do de Castro Alves, foi composto em 1854. Castro Alves possivelmente o leu; o seu foi publicado após sua morte, em 1871.

O navio negreiro (Das Sklavenschiff – 1854), de Heinrich Heine (1797-1856)

O sobrecarga Mynherr van Koek
Calcula no seu camarote
As rendas prováveis da carga,
Lucro e perda em cada lote.


“Borracha, pimenta, marfim
E ouro em pó… Resumindo, eu digo:
Mercadoria não me falta,
Mas o negro é o melhor artigo.

Seiscentas peças barganhei
– Que pechincha! – no Senegal;
A carne é rija, os músculos de aço,
Boa liga do melhor metal.


Em troca dei só aguardente,
Contas, latão – um peso morto!
Eu ganho oitocentos por cento
Se a metade chegar ao porto.


Se chegarem trezentos negros
Ao porto do Rio Janeiro
Pagará cem ducados por peça
A casa Gonzales Perreiro.


De súbito, Mynherr van Koek
Voltou-se, ao ouvir um rumor;
É o cirurgião de bordo que entra,
É van der Smissem, o doutor.


Que focinheira verruguenta!
Que magreza desengonçada!
“E então, seu doutor, diz van Koek, Como vai a minha negrada?”


Depois dos rapapés, o médico,
Sem mais prolóquios, relatando:
“A contar desta noite, observa,
Os óbitos vêm aumentando.


Em média eram só dois por dia,
Mas hoje faleceram sete:
Quatro machos, três fêmeas, perda
Que arrolei no meu balancete.

Examinei logo os cadáveres,
Pois o negro desatinado
Se finge de morto, esperando,
Deitado ao mar, fugir a nado!


Seguindo à risca as instruções,
Ao primeiro clarear da aurora,
Mandei retirar os grilhões
E – carga ao mar! – sem mais demora.


Os tubarões, meus pensionistas,
Acudiram todos, em bando,
Carne de negro é manjar fino
Que aparece de vez em quando.


Mal nos afastamos da costa,
Rastreiam o barco, na esteira,
Farejando de muito longe
Os eflúvios da petisqueira.


Edificante é o espetáculo,
Pois o tubarão narigudo
Não escolhe cabeça ou perna
E abocanha, devora tudo!


Como se o opíparo banquete
Fosse um simples aperitivo,
Põe-se a rondar, pedindo mais,
Sempre à espreita e de olho vivo.”


Mas o inquieto van Koek lhe corta
O relato em meio… Como há de
Remediar-se a perda, pergunta,
Combatendo a letalidade?


Responde o doutor: “Natural
É a causa; os negros encerrados,
A catinga, a inhaca, o bodum
Deixam os ares empestados.


Muitos, além disso, definham
De banzo ou de melancolia;
São males que talvez se curem
Com música, dança e folia.”

“O conselho é de mestre!, exclama
Van Koek. O preclaro doutor
É perspicaz como Aristóteles,
Que de Alexandre era mentor!


Eu, presidente dos Amigos
Da Tulipa em Delft, declaro
Que, embora sabido, a seu lado
Não passo de aprendiz, meu caro.


Música! Música! A negrada
Suba logo para o convés!
Por gosto ou ao som da chibata
Batucará no bate-pés!”

O céu estrelado é mais nítido
Lá na translucidez da altura.
Há um espreitar de olhos curiosos
Em cada estrela que fulgura.


Elas vieram ver de mais perto
No mar alto, de quando em quando,
O fosforear das ardentias.
Quebra a onda, em marulho brando.


(Não se agita no navio uma vela
E o mastro resta imóvel na bonança;
Mas brilham luzes por todo o convés
Onde explodem a música e a dança.)


Atrita a rabeca o piloto
Sopra na flauta o cozinheiro,
Zabumba o grumete no bombo
E o cirurgião é o corneteiro.


A negrada, machos e fêmeas,
Aos gritos, aos pulos, aos trancos
Gira e regira: a cada passo,
Os grilhões ritmam os arrancos


E saltam, volteiam com fúria incontida,
Mais de uma linda cativa
Lúbrica, enlaça o par desnudo –
Há gemidos, na roda viva.

O beleguim é o maître des plaisirs,
É ele quem manda e desmanda;
Instiga o remisso a vergalho
E rege a grito a sarabanda.


E tataratá e denderendém!
O saracoteio insano
Desperta os monstros que dormem nas ondas
Ao profundo embalo do oceano.


Tubarões, ainda tontos de sono,
Vem vindo, de todos os lados;
Querem ver, querem ver para crer,
Estão de olhos arregalados.


Mas percebem que o desjejum
Longe está e logo, impacientes,
Num bocejo de tédio e fome,
Arreganham a serra dos dentes.


E tataratá e denderendém!
Não tem fim a coreia estranha.
Mais de um tubarão esfaimado
Sua própria cauda abocanha.


Eles não querem saber de música,
Como outros do mesmo jaez.
“Desconfia de quem não gosta
De música”, disse o poeta inglês.


E denderendém e tataratá –
A estranha festança não tem fim.
No mastro do traquete, van Koek
De mãos postas, rezava assim:


“Meu Deus, conserva os meus negros,
Poupa-lhes a vida, sem mais!
Pecaram, Senhor, mas considera
Que afinal não passam de animais.


Poupa-lhes a vida, pensa no teu filho,
Que ele por todos nós sacrificou-se!
Pois, se não me sobrarem trezentas peças,
Meu rico negocinho acabou-se.”


Tradução de Augusto Meyer (1902-1970)

Publicado por Dorgival Soares

Administrador de empresas, especializado em reestruturação e recuperação de negócios. Minha formação é centrada em finanças, mas atuo com foco nas pessoas.

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