
Henriqueta Lisboa: mineira, diáfana, esquiva, equilibrada, sensível …
Modelagem – Mulher (1982)
Assim foi modelado o objeto:
para subserviência.
Tem olhos de ver e apenas
entrevê. Não vai longe
seu pensamento cortado
ao meio pela ferrugem
das tesouras. É um mito
sem asas, condicionado
às fainas da lareira
Seria uma cântaro de barro afeito
a movimentos incipientes
sob tutela.Ergue a cabeça por instantes
e logo esmorece por força
de séculos pendentes.
Ao remover entulhos
leva espinhos na carne.
Será talvez escasso um milênio
para que de justiça
tenha vida integral.
Pois o modelo deve ser
indefectível segundo
as leis da própria modelagem.
Vem, doce morte
“Vem, doce morte. Quando queiras.
Ao crepúsculo, no instante em que as nuvens
desfilam pálidos casulos
e o suspiro das árvores – secreto –
não é senão prenúncio
de um delicado acontecimento.Quanto queiras. Ao meio-dia, súbito
espetáculo deslumbrante e inédito
de rubros panoramas abertos
ao sol, ao mar, aos montes, às planícies
com celeiros refertos e intocados.Quando queiras. Presentes as estrelas
ou já esquivas, na madrugada
com pássaros despertos, à hora
em que os campos recolhem as sementes
e os cristais endurecem de frio.Tenho o corpo tão leve (quando queiras)
que a teu primeiro sopro cederei distraída
como um pensamento cortado
pela visão da lua
em que acaso – mais alto – refloresça.
Do Supérfluo (1982)
Também as cousas participam
de nossa vida. Um livro. Uma rosa.
Um trecho musical que nos devolve
a horas inaugurais. O crepúsculo
acaso visto num país
que não sendo da terra
evoca apenas a lembrança
de outra lembrança mais longínqua.
O esboço tão-somente de um gesto
de ferina intenção. A graça
de um retalho de lua
a pervagar num reposteiro
A mesa sobre a qual me debruço
cada dia mais temerosa
de meus próprios dizeres.
Tais cousas de íntimo domínio
talvez sejam supérfluas.
No entanto
que tenho a ver contigo
se não leste o livro que li
não viste a rosa que plantei
nem contemplaste o pôr-do-sol
à hora em que o amor se foi?
Que tens a ver comigo
se dentro em ti não prevalecem
as cousas — todavia supérfluas —
do meu intransferível patrimônio?
O mistério
Na morte, não. Na vida.
Está na vida o mistério.
Em cada afirmação ou
abstinência.
Na malícia
das plausíveis revelações,
no suborno
das silenciosas palavras.
Tu que estás morto
esgotaste o mistério.
Ora a distância perseguias,
ora recuavas.
Era o apogeu ou o nirvana
que tateando buscavas?
Ah! talvez fosse a morte.
Não se sabia quando vinhas
nem quando partias. Eras
o Esperado e o Inesperado.
Grandes navios viajavas
com a mesma estranha gratuidade
com que ao planalto descias
por uma escada de nuvens.
Belo de inconstância e arrojo
com teu lastro de intuições,
a um apelo da noite
todo te entregavas, trêmulo
entre carícias e tempestades.
Que mundo vinha nascendo?
Ah! Talvez fosse a morte.
Conheceste os suspiros,
o lento disfarce do sangue,
as rosas do espírito, as secas
rosas nos dedos trituradas.
Por uma solução ansiavas…
Ah! talvez fosse a morte.
Agora estás poderoso
de indiferença, de equilíbrio.
Completo em ti mesmo, forro
de seduções e amarras.
Nada te açula ou tolhe.
És todo e és um, apenas.
A plenitude da água,
da pedra,
tens.
E és natural, és puro, és simples como
a água, a pedra.