Na morte, não. Na vida./Está na vida o mistério.

A poesia de Henriqueta Lisboa | Prosa - O Globo
(Henriqueta Lisboa, 1901-1985)

Henriqueta Lisboa: mineira, diáfana, esquiva, equilibrada, sensível …


Modelagem – Mulher (1982)

Assim foi modelado o objeto:
para subserviência.
Tem olhos de ver e apenas
entrevê. Não vai longe
seu pensamento cortado
ao meio pela ferrugem
das tesouras. É um mito
sem asas, condicionado
às fainas da lareira
Seria uma cântaro de barro afeito
a movimentos incipientes
sob tutela.

Ergue a cabeça por instantes
e logo esmorece por força
de séculos pendentes.
Ao remover entulhos
leva espinhos na carne.
Será talvez escasso um milênio
para que de justiça
tenha vida integral.
Pois o modelo deve ser
indefectível segundo
as leis da própria modelagem.

Vem, doce morte

“Vem, doce morte. Quando queiras.
Ao crepúsculo, no instante em que as nuvens
desfilam pálidos casulos
e o suspiro das árvores – secreto –
não é senão prenúncio
de um delicado acontecimento.

Quanto queiras. Ao meio-dia, súbito
espetáculo deslumbrante e inédito
de rubros panoramas abertos
ao sol, ao mar, aos montes, às planícies
com celeiros refertos e intocados.

Quando queiras. Presentes as estrelas
ou já esquivas, na madrugada
com pássaros despertos, à hora
em que os campos recolhem as sementes
e os cristais endurecem de frio.

Tenho o corpo tão leve (quando queiras)
que a teu primeiro sopro cederei distraída
como um pensamento cortado
pela visão da lua
em que acaso – mais alto – refloresça.

Do Supérfluo (1982)

Também as cousas participam

de nossa vida. Um livro. Uma rosa.

Um trecho musical que nos devolve

a horas inaugurais. O crepúsculo

acaso visto num país

que não sendo da terra

evoca apenas a lembrança

de outra lembrança mais longínqua.

O esboço tão-somente de um gesto

de ferina intenção. A graça

de um retalho de lua

a pervagar num reposteiro

A mesa sobre a qual me debruço

cada dia mais temerosa

de meus próprios dizeres.

Tais cousas de íntimo domínio

talvez sejam supérfluas.

No entanto

que tenho a ver contigo

se não leste o livro que li

não viste a rosa que plantei

nem contemplaste o pôr-do-sol

à hora em que o amor se foi?

Que tens a ver comigo

se dentro em ti não prevalecem

as cousas — todavia supérfluas —

do meu intransferível patrimônio?

O mistério

Na morte, não. Na vida.

Está na vida o mistério.

Em cada afirmação ou

abstinência.

Na malícia

das plausíveis revelações,

no suborno

das silenciosas palavras.

Tu que estás morto

esgotaste o mistério.

Ora a distância perseguias,

ora recuavas.

Era o apogeu ou o nirvana

que tateando buscavas?

Ah! talvez fosse a morte.

Não se sabia quando vinhas

nem quando partias. Eras

o Esperado e o Inesperado.

Grandes navios viajavas

com a mesma estranha gratuidade

com que ao planalto descias

por uma escada de nuvens.

Belo de inconstância e arrojo

com teu lastro de intuições,

a um apelo da noite

todo te entregavas, trêmulo

entre carícias e tempestades.

Que mundo vinha nascendo?

Ah! Talvez fosse a morte.

Conheceste os suspiros,

o lento disfarce do sangue,

as rosas do espírito, as secas

rosas nos dedos trituradas.

Por uma solução ansiavas…

Ah! talvez fosse a morte.

Agora estás poderoso

de indiferença, de equilíbrio.

Completo em ti mesmo, forro

de seduções e amarras.

Nada te açula ou tolhe.

És todo e és um, apenas.

A plenitude da água,

da pedra,

tens.

E és natural, és puro, és simples como

a água, a pedra.

Publicado por Dorgival Soares

Administrador de empresas, especializado em reestruturação e recuperação de negócios. Minha formação é centrada em finanças, mas atuo com foco nas pessoas.

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