Autobiografia precoce

20 frases de Millôr Fernandes, o homenageado da Flip em 2014 - ADNEWS

Autobiografia De Mim Mesmo À Maneira De Mim Próprio

“E lá vou eu de novo, sem freio nem paraquedas. Saiam da frente, ou debaixo que, se não estou radioativo, muito menos estou radiopassivo.

Quando me sentei para escrever vinha tão cheio de ideias que só me saíam gêmeas, as palavras – reco-reco, tati-bitati, ronronar, coré-coré, tom-tom, rema-rema, tintim-por-tintim.

Fui obrigado a tomar uma pílula anticoncepcional.

Agora estou bem, já não dói nada.

Quem é que eu sou? Ah, que posso dizer? Como me espanta! Já não se fazem Millôres como antigamente!

Nasci pequeno e cresci aos poucos. Primeiro me fizeram os meios e, depois, as pontas. Só muito tarde cheguei aos extremos. Cabeça, tronco e membros, eis tudo.

E não me revolto. Fiz três revoluções, todas perdidas (foi aí que resolvi me afastar da política; me senti como um navio abandonando os ratos).

A primeira foi contra Deus, e ele me venceu com um sórdido milagre.

A segunda com o destino, e ele me bateu, deixando-me só com seu pior enredo.

A terceira contra mim mesmo, e a mim me consumi, e vim parar aqui.

Vêem o que sou? E onde estou? E por que foi?

Ah, sim, Millôr, é o que eu dizia. Nasci no Meyer, aos nove anos de idade, onde é que já ouvi isso?

Aqui estou porém, tão magro e tonto, vago e preocupado: no escuro não enxergo, não entendo do que não sei, paro onde me detenho, vou e volto cheio de saudades. Pois, se fico, anseio pelo desconhecido. Se parto, rói-me a separação.

Sou como toda gente. Já me lembro: estudei na Escola Enes de Souza, no Meyer, onde, depois, fundei a Universidade do mesmo nome.

Mas meus cursos maiores são de rua (e uma ou outra estrada), com seus currículos vitais de malandragem e medo.

Dou um boi pra não entrar numa briga. Dou uma boiada pra sair dela.

Aos dez anos de idade vendi meu primeiro desenho pra jornal e me tornei alvo da admiração geral (minha mãe e minha avó).

Aos quinze já era famoso em várias partes do mundo, todas elas no Brasil.

Pois sou popular por natureza, por mais que me esforce pra ser hermético e profundo.

Se eu chego e digo que achei um ninho de mafagafos com sete mafagafinhos, todos percebem logo que quem os desmafagafizar bom desmafagafizador será.

Meu maior orgulho profissional é ter sido publicado, há dez anos, e já como folclore, no almanaque da Saúde da Mulher.

Talvez porque esse almanaque fosse uma das publicações mais profundamente populares de minha infância, ou porque as coisas mais preciosas da vida sejam Saúde e Mulher (ôba!)

Venho, em linha reta, de espanhóis e italianos. Dos espanhóis herdei a natural tentação do bravado, que já me levou a procurar colorir a vida com outras cores: céu feito de conchas de metal roxo e abóbora, mar todo vermelho, e mulheres azuis, verdes, ciclames.

Na bandeira que fiz pra minha Pátria, o lilás representa a cor das nossas florestas, o carmim a cor das nossas riquezas naturais, o amarelo a cor do nosso céu em dias verdes. Tudo isso, naturalmente, sob o dístico ‘Desordem e Retrocesso’.

Ah, como padeço!

Dos italianos que, tradicionalmente, dão para engraxates ou artistas, eu consegui conciliar as duas qualidades, emprestando um brilho novo ao humor nativo.

Posso dizer que todo o País já riu de mim, embora poucos tenham rido do que é meu.

Sou um crente, pois creio firmemente na descrença.

Não creio em Deus, mas sei que Ele crê em mim.

Creio que a Terra é chata. Procuro em vão não sê-lo.

Creio que as paralelas se encontram nos paralelepípedos.

Acredito também numa lógica de ferro como base para um pensamento mais amplo que é ilógico, lolobrigido, subjetivo e animal.

Como os checos, eu posso dizer SVOBODA SUVERENITA. Ou melhor: ZA SVOBODU DUBCEKA CERNIKA. O que, ambas as frases, literalmente, não tenho a menor ideia do que querem dizer.

Mas estou disposto a morrer por elas, como tanta gente morre por outras frases que também não entende.

Para a vida e para a morte, como dizia Dom Pedro, às margens do Ipiranga, depois de satisfazer suas necessidades básicas.

Não me acho possuidor de um poder divino, mas de vez em quando solto meus trovões, e algum raio que os parta.

Quanto a certos chefes de Estado, acho que devemos lhes dar todo o nosso apoio para ex-presidentes.

E como recompensa exijo pouco – apenas, se a coisa endurecer, ser fuzilado por último.

Pois, em matéria de Democracia a que eu aprecio mesmo é a do Papá Doc que, esse sim, não faz discriminações a favor de ninguém. Fuzila amigos, inimigos e parentes na mesma proporção e com a mais serena equidade.

Apesar da escola, sou basicamente, um autodidata. Tudo que não sei sempre ignorei sozinho.

Nunca ninguém me ensinou a pensar, a escrever ou a desenhar, coisa que se percebe facilmente.

A esta altura da vida, além de descendente e vivo, sou, também, antepassado.

É bem verdade que, como Adão e Eva, depois de comerem a maçã, não registraram a ideia, daí em diante qualquer imbecil se achou no direito de fazer o mesmo.

Só posso dizer, em abono meu, que ao repetir o Senhor, eu me empreguei a fundo. Em suma: um humorista nato.

Muita gente, eu sei, preferiria que eu fosse um humorista morto, mas isso virá a seu tempo. Eles não perdem por esperar.

Quando esteve aqui, recentemente, trazendo embaixo do braço a ponte Rio-Niterói pra vender aos nativo, a Rainha Elizabeth (Gold save the Queen) reconheceu o meu talento e me agraciou com um cartão especial (0007) que me autoriza, inclusive, a usar o humor britânico.

O Príncipe Consorte também tinha um cartão desses, mas foi cassado depois das grossuras que cometeu em nome do humor sem que o humor nem desse as caras.

Assim posto, dito e passado, abro aqui, hoje, nesta praça colorida, o meu modesto péguipágui.

Numa sociedade de consumo, só o Supermercado existe para a eternidade.

Neste aqui você encontrará sobretudo o supérfluo, o circunstancial e o dispensável, mas também, algumas vezes, artigos mais preciosos, como o pão do espírito (dormido), a carne de minha carne (que, aliás, é fraca), as aves que aqui gorjeiam, os ovos do ofício (perdão, professora, os ossos!) e o leite da bondade humana.

Cada semana, neste mafuá moderno, nesta réplica século XX do chandeu chinês, das núndinas milenares, da bezesã síria, do telônio, da ágora ateniense, da feira de todos os tempos e de todos as esquinas, do empório, do entreposto, do armarinho, do armazém, da baiuca, da venda, nesta bodega sem fronteiras nem limitações, eu virei, a quem quiser, vender meu peixe. Que é pobre, mas se multiplica.

‘E isso é isso’, como dizia Shakespeare.”

(Millôr Fernandes, Veja, 1968)

Publicado por Dorgival Soares

Administrador de empresas, especializado em reestruturação e recuperação de negócios. Minha formação é centrada em finanças, mas atuo com foco nas pessoas.

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