Devagar e nunca

Millôr: obra gráfica (IMS Rio) - Instituto Moreira Salles
(Millôr Fernandes)

Os acontecimentos são lentos, demorados; para, às vezes, acontecerem. Neste momento parecem imediatos, urgentes. A letargia é o tom. Ninguém se incomoda com o andar da carruagem, mesmo que afetem sua breve vivência, e a tornem insuportável e insípida.

Trago aqui, uma fábula, escrita em 1944, por Millôr Fernandes, no ritmo de nossa história.

Como ele diz, é “um conto escrito inteiramente em câmara lenta”. Tenham paciência.

O Abridor de Latas

“Quando esta história se inicia já se passaram quinhentos anos, tal a lentidão com que ela é narrada.

Estão sentadas à beira de uma estrada três tartarugas jovens, com 800 anos cada uma, uma tartaruga velha com 1200 anos, e uma bem pequenininha ainda, com apenas 85 anos.

As cinco tartarugas estão sentadas, dizia eu. E dizia-o muito bem pois elas estavam sentadas mesmo.

Vinte e oito anos depois do começo desta história a tartaruga mais velha abriu a boca e disse:

– Que tal se fizéssemos alguma coisa para quebrar a monotonia desta vida?

– Formidável, disse a tartaruguinha, 12 anos depois. – vamos fazer um piquenique?

Vinte e cinco anos depois as tartarugas se decidiram a realizar o piquenique.

Quarenta anos depois, tendo comprado algumas dezenas de latas de sardinhas e várias dúzias de refrigerantes, elas partiram.

Oitenta anos depois chegaram a um lugar mais ou menos aconselhável para um piquenique.

– Ah – disse a tartaruguinha, 8 anos depois – excelente local este!

Sete anos depois todas as tartarugas tinham concordado.

Quinze anos se passaram e, rapidamente, elas tinham arrumado tudo para o convescote.

Mas, súbito, três anos depois, elas perceberam que faltava o abridor de latas para as sardinhas.

Discutiram e, ao fim de vinte anos, chegaram à conclusão de que a tartaruga menor devia ir buscar o abridor de latas.

– Está bem – concordou a tartaruguinha três anos depois – mas só vou se vocês prometerem que não tocam em nada enquanto eu não voltar.

Dois anos depois as tartarugas concordaram imediatamente que não tocariam em nada, nem no pão nem nos doces. E a tartaruguinha partiu.

Passaram-se cinquenta anos e a tartaruga não apareceu. As outras continuavam esperando. Mais 17 anos e nada. Mais 8 anos e nada ainda. Afinal uma das tartarugas murmurou:

– Ela está demorando muito. Vamos comer alguma coisa enquanto ele não vem?

As outras não concordaram, rapidamente, dois anos depois.

E esperaram mais 17 anos. Aí outra tartaruga disse:

– Já estou com muita fome. Vamos comer só um pedacinho de doce que ela nem notará.

As outras tartarugas hesitaram um pouco mas, 15 anos depois, acharam que deviam esperar pela outra.

E se passou mais um século nessa espera.

Afinal a tartaruga mais velha não pôde mesmo e disse:

– Ora, vamos comer mesmo só uns docinhos enquanto ela não vem.

Como um raio as tartarugas caíram sobre os doces seis meses depois.

E justamente quando iam morder o doce ouviram um barulho no mato por detrás delas e a tartaruguinha mais jovem apareceu:

– Ah, murmurou ela, eu sabia, eu sabia que vocês não cumpririam o prometido e por isso fiquei escondida atrás da árvore. Agora eu não vou mais buscar o abridor, pronto!”

Assim, o Salvador da Lavoura, o que traria o abridor, nunca o trouxe.

Publicado por Dorgival Soares

Administrador de empresas, especializado em reestruturação e recuperação de negócios. Minha formação é centrada em finanças, mas atuo com foco nas pessoas.

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