
Maria do Sameiro Barroso, nasceu em Braga (Portugal), em 1951. É médica, tradutora, ensaísta e poetisa.
Noite Dissecada
Já não pernoitas no jardim luminoso
das quimeras inocentes.
Com os olhos vazados e a íris sem cor,
persegues os laços negros, a lua negra,
alheio aos subterfúgios da luz e da doçura.
Com os pulmões cheios de água
e os olhos esvaziados para sempre,
perdes-te de ti,
já não escutas a pulsação do corpo,
apenas a rosa gelada.
As faíscas saltam na héctica hierarquia
das nuvens, segregadas sem norte.
Na ciência da morte, inicias a peregrinação
ao sol, ao centro e à medula silente
onde flutuam corpúsculos lunares,
violinos corroídos entre flores de trégua,
suspensas da ígnea metamorfose
que oculta a torrente de sombra,
o sonho feroz e a rosa inteira,
guardada na pedra raiada-obscura
que observa a luz,
na noite dissecada sobre vísceras silentes.
Neste Tempo Aquoso
Leio-te na eterna flor do tempo inconsciente.
Tudo o que subsiste é a inconsistência frágil
das horas turbulentas.
Na confluência dos silêncios, os sonhos
terminam abruptamente.
Só à noite, as lucernas dúbias respiram
a sua confluência exata.
Só à noite, os rios se fundem na morte.
Neste tempo aquoso, pernoito nas bainhas
inarticuladas, nas tempestades de gelo.
Na fugacidade dos dias, termina a chama azul
das borboletas que morrem,
consumando a eternidade dos instantes.
Leio-te na enganosa luz das cidades sombrias.
Deito-me no leito antigo do mar encrespado.
Leio-me no terror que me devolve
às vagas de lume.
Só à noite, os poros da eternidade se abrem
às vagas negras de luz e pedra-pomes,
entre vagens macias,
e gavinhas doces de ervilhas de cheiro.