
Maria Rita Kehl é psicanalista, crítica literária, jornalista, escritora e poetisa. Tem 69 anos.
Imprevisões do tempo (1980)
“Eu era muito velha.
Aos quinze anos podia jurar
que as noites de sábado foram feitas para se pintar os olhos
e ter um namorado.
Aos dezoito a maior batalha
consistia em encher a semana de responsabilidades
e então me sentir vivendo.
Com vinte descobri
que a idade própria para ser teenager se acabava
Eu não tive adolescência.
Também não fui debutante
não dancei valsa de formatura
fiz vestibular e todo mundo
apostava em meu futuro
como eu.
Não sei com foi que aconteceu
mas aos vinte e três anos a vida estava mais divertida
do que deveria
aos vinte sete está muito melhor e assim
confio que aos trinta será a maior bandalheira
e daí prá frente benza deus.
Quando disseram: essa menina vai longe
não imaginei que podiam dizer:
onde é que você vai parar?
porque era muito velha
e que trabalho me deu esse tempo todo
que luta que farra que sofrimento
crescer
e me desvencilhar do peso enorme
das minhas tenras idades!”
Recurso
“O método faz milagres.
Passar no quarto das crianças antes de deitar
só matar os insetos comprovadamente nocivos
sair lá fora no escuro, cinco minutos na primeira noite,
dez na segunda, até conseguir no mínimo uma hora de contemplação
sem terror.O método tece uma teia ——
horários —— rotas de ônibus —— receitas ——
telefonemas na 6a. ——
caderninhos ——quando a trama é bem firme e cada gesto idiota adquire sentidos surpreendentes
imprescindíveis depois de algum tempo
capazes de sustentar uma existência inteira.”
Filha
A morte não chega toda de uma vez.
Enquanto isso
te existo
corpo emprestado a teu nome
palavra aberta ao dizer.Te faço habitar meu gesto
para alcançar o que terias sidoe no avesso do tempo
eu te concebo
eu incendeio o nada à tua frente
eu inauguro o que foste
antes de mim.
Rascunho
no último dia
alguma coisa terá sido escrita
a contrapelo
sobre o que não foio amor não passa a limpo
não assina nadavai espalhando garranchos
pela página sem margemdepois
não fecha o caderno
as folhas ficam se descabelando ao vento.o amor não liga.
ninguém vai ler.
Amei!
Mas, o que é mesmo o tempo?
O registro de tudo o que foi e também do que é, e ainda do que um dia será!.
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