
1927. Mário de Andrade sai da Paulicéia e passa a conhecer o Brasil, ficção para a maioria dos ‘sulistas’. Regiões ‘remotas’, tradições peculiares … um outro Brasil.
Antes, em abril de 1924, Mário voltara a Minas na “viagem da descoberta do Brasil”, quando o grupo modernista paulistano, a mecenas Olívia Guedes Penteado e amigos percorram as cidades históricas no intuito de apresentá-las ao poeta Blaise Cendrars.
Interessante o registro feito no Hotel Macedo de São João del-Rei sobre os participantes:
“D. Olívia Guedes Penteado, solteira, photographer, anglaise, London; D. Tarsila do
Amaral, solteira, dentista, americana, Chicago; Dr. René Thiollier, casado, pianista,
russo, Rio; Blaise Cendrars, solteiro, violinista, allemand, Berlin; Mário de Andrade,
solteiro, fazendeiro, negro, Bahia; Oswald de Andrade Filho, solteiro, escrittore, suíço.”
Teriam eles declarado essas características? Só a cor da pele do Mário é registrada! E, registrado como fazendeiro!
Algumas observações:
“(…) Não sei, quero resumir minhas impressões desta viagem litorânea por nordeste e norte do Brasil, não consigo bem, estou um bocado aturdido, maravilhado, mas não sei … Há uma espécie de sensação ficada da insuficiência, de sarapintação, que me estraga todo o europeu cinzento e bem-arranjadinho que ainda tenho dentro de mim. Por enquanto, o que mais me parece é que tanto a natureza como a vida destes lugares foram feitos muito às pressas, com excesso de castroalves. E esta pré-noção invencível, mas invencível, de que o Brasil, em vez de se utilizar da África e da Índia que teve em si, desperdiçou-as, enfeitando com elas apenas a sua fisionomia, suas epidermes, sambas, maracatus, trajes, cores, vocabulários, quitutes … E deixou-se ficar, por dentro, justamente naquilo que, pelo clima, pela raça, alimentação, tudo, não poderá nunca ser, mas apenas macaquear, a Europa. Nos orgulhamos de ser o único, grande (grande?) país civilizado tropical … Isso é o nosso defeito, a nossa impotência. Devíamos pensar, sentir como indianos, chins, gente de Benin, de Java … Talvez então pudéssemos criar cultura e civilização próprias. Pelo menos seríamos mais nós, tenho certeza.”
“Talvez então pudéssemos criar cultura e civilização próprias. Pelo menos seríamos mais nós …” Mas, continuamos a nos rejeitar: somos feios – miscigenados -, não falamos inglês (antes seria o francês), pobres (a imensa maioria) … inviáveis. Não é só a elite que pensa assim – esse complexo de inferioridade está disseminado.
Na reedição de Macunaíma, Mário escreveu:
“A raiva de Vei a Sol por Macunaíma não ter se amulherado com uma das filhas da luz, é porque vivemos errados, em vez de termos criado uma civilização nascida diretamente da terra tropical e suas exigências até morais, como indianos, chineses, aztecas (filhas da luz), importamos a civilização de clima temperado da Europa.”
Isso me lembra a impressão de James Baldwin (escritor americano negro), ao morar na Europa:
“… o momento mais crucial da minha formação foi aquele em que fui obrigado a admitir que eu era uma espécie de bastardo do Ocidente; quando traçava a linha do meu passado, eu não ia parar na Europa, e sim na África. E isso queria dizer que, de alguma maneira sutil, de alguma maneira muito profunda, eu era obrigado a encarar Shakespeare, Bach, Rembrandt, as pedras de Paris, a catedral de Chartres e o Empire State Building com uma atitude especial. Essas criações não eram realmente minhas, não abrigavam minha história; seria inútil procurar nelas algum reflexo de mim. Eu era um intruso …
Eu teria que me apropriar dessa história branca secular, teria que torná-la minha.”
Enquanto não ficarmos confortáveis com nossa condição de ‘brasileiros’ e aceitarmos nossas peculiaridades – com grandes qualidades – , vagaremos nesse mundo no qual os que não se aceitam já estão – e ficarão – atrás.
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