
“Tinha quatro anos quando fiquei densa, pesada de uma estranha sabedoria.
Morávamos na Rua Maranhão, em São Paulo. Certa madrugada, a casa ainda escura, desci as escadas. Deslizei pelas salas, abri a porta da cozinha suspendendo-me nas pontas dos pés.
E aí tive a grande revelação: o sol nascia nos ladrilhos brancos. O sol estava ali, petrificado, uma brasa com reverberações. Só nos ladrilhos ele morava. Depois, lentamente, foi ganhando corredores e salas.
‘Despejou-se pelo jardim, pelo mundo’ – eu pensei.”
Esse é um flash da memória de Helena Silveira, contista, falecida em 1984. É um instantâneo duradouro, daqueles que nos marcam.
“Muito cedo tinha a intuição de que a perda da infância seria a perda do paraíso. E também que o amor, a segurança, tinham um preço.”
Seu pai, Alarico Silveira, anotava todas as palavras ‘estranhas’ que ouvia, no que, depois de sua morte, transformou-se numa ‘enciclopédia’.
Raquel de Queirós conta que Alarico a chamou para que ‘traduzisse’ algumas palavras de O Quinze: “… num trabalho semelhante ao de Capistrano de Abreu, que importava índios do sertão para os interrogar em pesquisas linguísticas. Os índios mostravam grande tédio e até mesmo certo desprezo intelectual pelo sábio cearense e comentavam: ‘Capistana burra – não sabe nada! Pergunta, pergunta, pergunta!”